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Sexta-feira, 29 de junho de 2018

Marcio Pochmann é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e presidente da Fundação Perseu Abramo

PORTAL ADVERSO – O que marca a 4ª Revolução Industrial?

Marcio Pochmann - Basicamente, a partir da segunda metade do século XVIII, 1750-1760, há uma primeira grande revolução industrial e tecnológica, cujas principais características estão associadas à introdução da mecanização, inicialmente, do tear mecânico, que substituiu as antigas rocas de produção têxtil. Na sequência, o motor a vapor foi fundamental para encurtar distâncias, agilizar o transporte ferroviário e a própria navegação. Essa revolução industrial tecnológica fez com que a Inglaterra, um país com 20 milhões de habitantes, na época, se transformasse no centro industrial produtor e exportador do mundo, superando antigas regiões que dominavam a produção na sociedade agrária. Essa primeira revolução industrial, de certa maneira, demarcou uma trajetória do capitalismo de elevados bens de produtividade em função da mecanização e da revolução tecnológica.

No final do século XIX, entre 1870 e 1910, uma segunda revolução industrial e tecnológica, mais associada aos EUA e Alemanha, foi marcada pela introdução de novos materiais, como o motor, a combustão, a química e os combustíveis fósseis. Décadas depois, no final dos anos 60, teve início um ciclo de progresso técnico, que veio com a microeletrônica e ganhou amplitude com os computadores, a nanotecnologia... era a terceira revolução industrial. Alguns autores identificam que a fase atual - com a presença mais concreta da inteligência artificial, dos robôs - tem uma característica distinta da terceira revolução industrial tecnológica. Então, há uma controvérsia se, de fato, esta é a quarta ou a terceira revolução.

De certa maneira, o que estamos vivendo é um avanço no progresso técnico, mas muito diferente do que ocorreu na primeira e na segunda revolução industrial, que foram marcadas pelo aparecimento de novos complexos de produção. Hoje, salvo as empresas vinculadas mais à internet, como o Facebook e o Google, as grandes corporações transnacionais, que são as principais responsáveis pela inovação tecnológica, têm 80, 100 anos. Elas são empresas da segunda revolução industrial, que vão alterando a forma de produção, de organização do trabalho e os materiais, mas dentro da estrutura produtiva já existente. As montadoras, antes, tinham uma organização fordista. Hoje, elas são empresas mais enxutas, robotizadas, mas dentro da estrutura que já existia. É diferente da primeira e, sobretudo, da segunda revolução industrial, que criaram novos sistemas de produção.

A discussão, agora, diz respeito à economia do tempo de trabalho, que é uma característica marcante do progresso técnico, que permite ganhos de produtividade, ou seja, produzir em maior escala com menos pessoas empregadas. A polêmica que está colocada é o que será feito com o excedente de mão de obra, que é estrutural nesta revolução tecnológica, mas que não é um fato novo na trajetória do capitalismo. A primeira revolução industrial e tecnológica também foi portadora de economia de mão de obra, porque o tear mecânico substituiu muitas pessoas das antigas rocas de produção têxtil, especialmente na Índia, que ainda era o principal centro produtor têxtil no início do século XVIII. O que aconteceu com a inovação tecnológica, na primeira revolução, é que grande parte das pessoas que sobraram do progresso tecnológico, migraram e conformaram o novo mundo. Com o progresso técnico, com a construção da sociedade urbana industrial, eles se aventuraram para a América Latina, para o Brasil, para a América do Norte e assim por diante. Então, a migração internacional foi um elemento que reduziu, suavizou o excedente de mão de obra gerado pelo progresso técnico na primeira revolução industrial.

"A discussão, agora, diz respeito à economia do tempo de trabalho, que é uma característica marcante do progresso técnico, que permite ganhos de produtividade, ou seja, produzir em maior escala com menos pessoas empregadas."

Na segunda revolução industrial, no final do século XIX e início do século XX, o ganho de produtividade e o excedente de mão de obra gerado foi enfrentado, de um lado, pelas duas grandes guerras mundiais, que significaram um número expressivo de mortos, e, de outro, com políticas que regularam o mercado de trabalho. As jornadas de trabalho, por exemplo, que eram de 60, 70 horas semanais, foram reduzidas para 48, 44 e até 40 horas semanais. E, também, os trabalhadores passaram a ter direito às férias, aos feriados. Outra iniciativa foi a proibição do trabalho infantil, porque até a segunda revolução industrial as crianças é que predominavam no mercado de trabalho, a industrialização europeia foi feita com o trabalho infantil. Isso significou menos pessoas neste mercado de trabalho. Da mesma forma que a criação do sistema de aposentadoria e pensão fez com elas, depois de terem trabalhado certo tempo, saíssem do mercado de trabalho. Então, o que eu quero chamar a atenção é para o fato de que foi possível chegar ao pleno emprego, mesmo com a segunda revolução tecnológica, porque houve ações dessa natureza.

"...até a segunda revolução industrial as crianças é que predominavam no mercado trabalho, a industrialização europeia foi feita com o trabalho infantil."

Hoje, quando se debate a questão do progresso tecnológico, da 4ª Revolução, pensamos que vai haver desemprego estrutural e só cabe aos trabalhadores se preparar para conviver com as novas exigências do mercado. No meu modo de ver, estas conclusões só são verdadeiras porque não existe uma atuação sindical e partidária que enfrente o problema gerado pelas novas tecnologias. O que pode ser feito? Em primeiro lugar, nada justifica jornadas de trabalho superiores a 12 horas semanais. A questão colocada é: como se divide o progresso técnico e os ganhos de produtividade? Os trabalhadores não podem ficar passivos frente à inovação tecnológica. No passado, os ganhos de produtividade foram imensos, o desemprego gerado foi muito grande, mas encontramos soluções. Então, quero dizer o seguinte: por que a jornada não pode ser reduzida? Por que o ingresso no mercado de trabalho tem que ser a partir dos 14 anos e não a partir dos 24, depois que os jovens completaram o ensino superior? Por que a aposentadoria tem que ser tão tarde? Por que as pessoas não podem estudar a vida toda? Nós temos alternativas! Existe uma agenda enorme para ser apresentada do ponto de vista do trabalho. O que está prevalecendo são os interesses do capital, e é natural que o capital queira utilizar, cada vez mais, a mecanização, a inteligência artificial, para poupar mão de obra, porque mão de obra representa custo de produção. Mas qual é o papel do trabalho? Olhando, do ponto de vista histórico, há saídas, embora essas saídas ainda não tenham sido apresentadas. No século XIX, os trabalhadores que defenderam jornadas de 48 horas semanais foram mortos. A origem do 1º de maio, nos Estados Unidos, é o assassinato de manifestantes que estavam defendendo jornadas menores. Essa e a luta que está faltando. Hoje, podemos dizer que o capital é o grande beneficiário dessa nova revolução.

"A questão colocada é: como se divide o progresso técnico e os ganhos de produtividade?" 

PORTAL ADVERSO - O senhor acredita que a sociedade também poderá colher os frutos do avanço tecnológico?

Pochmann - Esse é o campo da luta de classes. Para o capital, representado pelos proprietários e também representado pelos interesses de políticas neoliberais no âmbito do Estado, o resultado ideal é esse que a gente está vendo, que é o processo de concentração brutal da renda, da riqueza e do poder.

PORTAL ADVERSO – Neste cenário, como será a atividade docente?

Pochmann - A revolução em curso não é homogênea e nem uniforme. Ela se concentra em determinados setores e é conduzida, de maneira geral, pelas grandes corporações transnacionais. Quer dizer, nós estamos falando de revolução industrial e tecnológica num país que se desindustrializou. E é a indústria que pode nos tirar da recessão a que estivemos associados em 2015, 2016, uma indústria cujo peso é menor do que era na década de 1910, uma indústria com peso inferior a 10% do PIB.

A ênfase na formação é fundamental quando se tem uma estrutura produtiva que pode demandar trabalhadores qualificados. O que nós percebemos é que irá faltar emprego para quem está, hoje, nas universidades, porque, infelizmente, o Brasil se transformou num país do setor terciário, do setor de serviços, cujos empregos exigem baixa qualificação, com baixos salários. E agora, com a reforma trabalhista e a terceirização generalizada, o emprego formal assalariado tende a perder importância relativa diante das novas formas de contratação, como o micro-empreendedor individual, o PJ, o empregado por conta própria, enfim, o Brasil está assistindo às transformações que ocorrem no mundo e, mesmo tendo uma estrutura de ensino tão significativa, terminará formando pessoas que, simplesmente, não terão emprego. O que vemos é uma incompatibilidade entre o sistema de formação e a estrutura produtiva do País.

"...o Brasil está assistindo às transformações que ocorrem no mundo e, mesmo tendo uma estrutura de ensino tão significativa, terminará formando pessoas que, simplesmente, não terão emprego."

Portal adverso – Na sua opinião, qual será o futuro do emprego?

Pochmann - É preciso mudar a lógica desse futuro, que vem sendo construído através de um processo de intensificação brutal da exploração do trabalho. Uma exploração que não é apenas do ponto de vista material, das forças físicas do ser humano. É, cada vez mais, a apropriação da sua subjetividade, o que vem gerando o aparecimento de novas doenças profissionais vinculadas à depressão.

PORTAL ADVERSO - O ser humano, por fim, poderia se livrar das tarefas monótonas e repetitivas, e se dedicar a momento de reflexão e desenvolvimento do conhecimento, como conjecturou Domenico di Masi, no livro "Ócio Criativo"? Ou o trabalhador é, definitivamente, uma peça descartável neste mundo com tecnologias altamente desenvolvidas?

Pochmann - Domenico di Masi não especificou em qual país isso seria possível, porque, no fundo, essa realidade seria possível, justamente, nos países mais avançados tecnologicamente. Mas o que estamos percebendo é a destruição do estado de bem-estar social, com políticas neoliberais e a formação de um novo precariado, que é essa classe trabalhadora submetida a altas jornadas, insegurança no trabalho, sem acesso a direitos sociais e trabalhistas. Isso é o que está acontecendo numa era em que o domínio do capital está muito forte. Evidentemente que, como no início das revoluções tecnológicas anteriores, o capital saiu na frente, o que não impediu que houvesse uma reação organizada por parte dos trabalhadores. Portanto, eu acredito que é plenamente possível buscar outro futuro para a sociedade, em que os trabalhadores tenham a capacidade de disputar os ganhos fantásticos de produtividade que são gerados pelo progresso técnico. O fato é que, hoje, os trabalhadores estão divididos, há um enfraquecimento dos sindicatos e dos partidos de esquerda. Mas não podemos condenar o futuro, na medida em que é possível mudar essa correlação de forças.

"O fato é que, hoje, os trabalhadores estão divididos, há um enfraquecimento dos sindicatos e dos partidos de esquerda. Mas não podemos condenar o futuro, na medida em que é possível mudar essa correlação de forças."

PORTAL ADVERSO - A alteração da correlação de forças a que o senhor se refere pode se dar no contexto das próximas eleições?

Pochmann - No meu modo de ver, pelo menos, estamos diante de uma encruzilhada histórica. Eu não acredito que nós temos saídas tradicionais, saídas eleitorais. Guardada a proporção, o Brasil vive hoje algo comparável à década de 1930, ou mesmo à década de 1880, que foi fundamental do ponto de vista das mudanças estruturais do País. O Brasil era uma sociedade agrária escravista, que se transformou num país cujo modo de produção dominante passou a ser o capitalismo. No meu modo de ver, é uma situação comparável, porque estamos abandonando uma sociedade industrial e construindo uma nova sociedade de serviços, muito diferente da anterior. Estamos diante do retrocesso, mas isso não é o epílogo do livro, é um capítulo. A disputa da sociedade e as próprias eleições, dependendo da forma como vão ocorrer, podem ser um passo diferente do que estamos vivendo hoje, e isso está relacionado às lutas sociais, que não desapareceram e são fundamentais para demarcar o tipo de Brasil e o tipo de sociedade que vamos construir.

"Estamos diante do retrocesso, mas isso não é o epílogo do livro, é um capítulo."

PORTAL ADVERSO - Políticas compensatórias, como renda mínima e redução da jornada de trabalho, podem assegurar que mais seres humanos sejam beneficiados com os ganhos tecnológicos?

Pochmann - O capitalismo quer produzir, utilizando cada vez menos pessoas. A lógica é produzir excedente de mão de obra. Essa é a trajetória propositiva do capitalismo. O que é possível fazer, na realidade, é viabilizar possibilidades de vida fora do mercado de trabalho. É um processo que alguns autores denominam de desmercantilização. Você não precisa de salário gerado no mercado de trabalho para poder comprar a educação, a saúde, o transporte e assim por diante. Essa é uma possibilidade que está em aberto. A segunda, é a restrição à presença de jovens e pessoas com mais idade, por exemplo, nos espaços de regulação. Mas isso é um enfrentamento contra a lógica do capital, é a questão que está colocada: temos força pra fazer essa pressão? Até o momento, parece que não.

"O que é possível fazer, na realidade, é viabilizar possibilidades de vida fora do mercado de trabalho."

Por Daiani Cerezer

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